18 de mar. de 2011

"Fuuuu..."

Letícia olhava a televisão e espumava pelo canto da boca. Seu estômago embrulhava, a vista embaçava e a sua amiga Ana bem que tentou esconder mudando de canal. Mas o diacho já estava em rede nacional e ela catou outra emissora com exatamente a mesma cena. Letícia pensou em ferver água para jogar pelo ouvido dele, tudo isso enquanto Ana escondia o faqueiro da própria amiga.
Seis horas antes, no bucólico bairro do Lanat, mais precisamente na Rua Clínio de Jesus; Davi estava acordando de um digestivo cochilo em plena tarde de terça-feira de carnaval. Casado por dez anos com Letícia, ele é um marido exemplar e carinhoso, que lhe trata dignamente, compra presentes no aniversário dela e paga sem ver a fatura do cartão de crédito.
Foi trabalhar em seu consultório dentário nesta tarde, não por necessidade, mas por que seu paciente Valdemar – um rico empresário do ramo de cocô de boi e adubo orgânico, que paga em verdinhas vivas, fétidas e gordas – tinha explodido seu molar voltando de viagem de avião da França. Às três e meia Davi recebeu a ligação e marcou uma consulta de urgência em seu consultório na Avenida Garibaldi, quase em frente à folia.
Letícia quando soube cerrou o cenho. Estava tudo programado para os dois curtirem a folia de momo no camarote mais badalado da oceânica, all inclusive, open bar e outras luxurious amenities de cortesia dada por alguns amigos. Mas quatro dígitos num procedimento de urgência era um argumento tão sólido quando o gosto de cimento que ela sentia naquele momento.
Davi só chegou ao prédio onde fica seu consultório uma hora depois do agendado, por causa do trânsito medonho causado pela aglomeração da festa. E também era difícil se desvencilhar dos flanelinhas que subiam no capô do carro, brigando pelo direito de extorquir um trocado na moleza.  Ele deu um sorriso de canto de boca, ao frustrá-los entrando no seu estacionamento privativo.
No elevador sabia que seu Valdemar estava na porta do consultório esperando do lado de fora; primeiro porque sua atendente estava bêbada desde domingo, emendando cerveja, uísque e capeta. Não atendia o celular. Depois também porque desde o terceiro andar, sentia aquele cheiro característico daquilo que o fez rico.
A urgência pulpótica deixou Davi bastante contente consigo mesmo. Seu processo foi limpo e rápido. Depois de algumas kerrs e outras Hoedstrons tudo transcorreu sem intercorrências dolorosas e o seu abastado cliente, feliz da vida, pagou como combinado, sem nem exigir recibo.
De tão feliz que Valdemar estava, convidou Davi para sair e tomar algumas cervejas, mas frente à contra-indicação etílica feita pelo dentista, pelo menos o convidou para uma rápida passeada na folia, a poucos km dali.
Davi hesitou, mas pensou “Porque não? Se for rapidinho não machuca ninguém” Certificou-se que não seria o mesmo camarote que estariam alguns amigos, e foi.
Mas aquela morena inominada, anônima e animada; de corpo escultural com rosto que era só sorriso, chamou a atenção do doutor Davi. E quando ela percebeu o que despertou naquele galante homem de 45 anos, avançou em sua direção. Os dois se beijaram...
Valdemar há tempos buscava um pouco de credibilidade e visibilidade na sociedade, precisava tirar a imagem de comerciante de cocô. Porém, assim como o cheiro, esta imagem não saia nem com muito banho e colônias que desencadeiam crises de rinite a quem fique ao seu lado.  Sua alcunha era o Rei da Merda (de boi). Acenou bastante para o totem onde se encontravam algumas câmeras de televisão, chamando atenção para o cinegrafista que cobria ao vivo os lances da festa.
Mas o que o cameraman viu foi o espetáculo de morena que estava trançada com um felizardo dentista quarentão. Deu um zoom com sua Sony betacan-HDCamSR 1000, aumentando vinte e quatro vezes os trinta e cinco metros que o separava daquele beijo, chamado atenção do editor de imagens da ilha de edição: A cara da Bahia, o espírito do carnaval!

E o Davi, muito feliz com sua conquista, explodia de emoção, abriu metade do seu olho esquerdo e teve a sensação que todas as atenções estavam voltadas para ele. As respirações estavam prendidas, e de repente viu aquele big brother indiscretamente reluzente, aonde veio apenas uma única coisa à sua mente:
“Fuuuu... “

3 comentários:

Angelo disse...

fuuuuuuuu

Ana Tokus disse...

Bem feito. :P

Celia G Barral disse...

O cara passa a vida inteira pagando uma de certinho e resolve escorregar justo em frente as cameras de TV.
.....deuuuu! mesmo.hahahahah!

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