18 de fev. de 2011

Jocilene


Jocilene* tem apenas dezenove anos, é mãe de dois filhos e uma pessoa muito fechada. Sei que as pessoas que moram nas regiões rurais são um pouco desconfiadas, mas ela eleva isso ao cubo. Não que seja mal-educada, mas sua sisudez impressiona.
Seu filho caçula tem dois anos de idade e lembro bem a ocasião do seu nascimento: A equipe estava terminando os atendimentos da tarde, quando recebemos o ‘recado’ de que ela estava em trabalho de parto desde manhã. Cruzou as pernas e suportou as dores sem dar um grito, por todos os tortuosos vinte quilômetros de estrada de chão, que separam a comunidade do Riacho, da maternidade na sede da cidade. O menino nasceu enquanto preenchíamos os dados de sua mãe na recepção. Como disseram por lá: ‘escorregando como um quiabo’. Ficamos surpresos com a fibra e a coragem desta menina que, na época, tinha apenas dezessete anos.
Dizem que ela nunca chora, nem sente dor. Desde nova, tem uma vida difícil, aprendendo como é dura a luta de quem mora com uma família numerosa e que subsiste do que a terra dá. Casou-se também cedo com um homem bem mais velho e seu primeiro filho, ela teve com dezesseis anos.  Eu quero pensar que seja para tentar se livrar daquela rigorosa realidade e para dar um alívio à sua mãe, na pressão de alimentar tantas bocas.
Sempre que eu via Jocilene,  estava agendada para a enfermeira ou o médico, em suas consultas de puericultura, rotineiras no primeiro ano de vida de seu filho. Eu acenava à distância e procurava fazer um lembrete mental de cobrar sua visita. Mas hoje Jocilene, afinal, teve que ir ao dentista.
O seu problema dentário foi adiado até findar seu estoque de desculpas e quando ela foi a mim, descobriu infelizmente que seu molar estava irremediavelmente estragado. A saída seria removê-lo. Enfim, como acontece com muitos dos pacientes daquela comunidade e já esperando por isso, assentiu.
Aconteceu que antes de qualquer coisa, Jocilene cansou-se daquela imagem da corajosa menina-mulher de fibra e decidiu ser quem ela é realmente. Na minha cadeira ela chorou, soluçou, ficou com medo e contristou-se envergonhada. Dizia que não sabia o porquê daquilo acontecer (queria fazer-se acreditar que não tinha medo), enquanto desciam-lhe as lágrimas sem nada ter-se iniciado ainda.
Mas quer saber? Eu gostei.
Gostei de ver sua couraça junguiana de tanque de guerra, que foi elaborada anos a fio em busca de sua adaptação social, ceder lugar a aquela criança frágil (sua persona sem máscaras) que estava com medo do desconhecido. Não estou dizendo que gostei de vê-la sofrendo, de jeito algum! Mas naquele momento, estava acontecendo algo novo onde nem ela sabia direito e representa uma mudança muito positiva em sua vida, eu não poderia deixar de ser impactado.
Jocilene vai aos poucos procurando sua homeostase psicológica, compensando as etapas atropeladas de sua vida na medida em que suas emoções e seus anseios vencem suas barreiras auto-infligidas. Possivelmente isso ocorrerá aos trancos e barrancos, e o que eu vi pode ser mais que apenas reflexo de uma passageira fragilidade emocional. Uma vida inteira de amostras grátis emocionais está reservada para essa menina daqui pra frente.
Depois que ela se acalmou, o processo clínico transcorreu tranquilamente e não durou mais que quinze minutos. Quem sabe sua maneira de ver o mundo comece a ser abalada por uma simples visita ao dentista?

______________
*Não é seu nome real, OK?

6 comentários:

Anônimo disse...

São incríveis as histórias que nós dentistas tempos pra contar do convívio com os pacientes. Tentamos sempre ensinar algo pra eles, mas com certeza também temos muito pra aprender!
Gostei da crônica (pra variar! ;P)

Geisson disse...

Obrigado Doctor Victor, vindo de você é muito especial!

Ana Tokus disse...

Excelente texto. Lembra que nossos pacientes são pessoas, não bocas. Jocilene é única... e, ao mesmo tempo, como tantos outros. Parabéns, doc!

Rogério Boelter disse...

Realmente o paciente "se abre psicologicamente" quando se senta na cadeira do dentista. A cadeira de dentista é um verdadeiro divã! Basta a primeira consulta para o paciente começar a desabafar suas frustrações, problemas e ansiedades. Na cadeira do dentista ouvimos confissões de atos praticados ou sofridos que nunca foram ditos para ninguém. O ato de abrir a boca literalmente quebra todas as defesas psicológicas e deixa o paciente desabafar. Como profissionais de saúde temos que valorizar e tomar muito cuidado com este fenômeno, pois podemos "manipular" a opinião do paciente. Se isso for feito e for feito erroneamente pode trazer diversos problemas...

lcbotelho disse...

Bacana demais, minha realidade no sertão da Bahia é bem próxima .....temos muito a aprender com esse povo sofrido, que se mantém firme apesar das inúmeras dificuldades do dia a dia.

Geisson disse...

Obrigado pelo comentário Icbotelho, são desafios diários que só fazem estimular ainda mais nosso trabalho.
Abraços

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