26 de fev. de 2011

Odontologia Forense

Certa vez, uma turma boa resolveu acampar com familiares e amigos, num desses hotéis-fazenda que oferecem infra-estrutura de camping. Têm-se o gostinho de aventura dormindo numa barraca com a comodidade de banheiros e refeitórios, numa forma light de fazer um conhecido programa de índio.
No dia seguinte, houve uma comoção geral com uma repentina bagunça no local onde se localizava a dispensa. De início imaginavam que seria algum pequeno roedor, mas o tamanho do animal aumentava conforme se tinha noção da extensão do estrago. Assim que se percebeu que somente um elefante poderia ter feito tamanho estrago – e não é todo dia que se topa com um por aqui – consideraram a possibilidade de alguém ter feito uma visitinha noturna.
Quando houve uma reunião, depois de muita conversa mole e acusações para todos os lados, tudo ficou do jeito que estava. Não para dona Zenilda, uma senhora afro-baiana-descendente de mais de cinqüenta anos que tomou pra si a responsabilidade de cuidar da dispensa (também preparar algumas refeições espetaculares, para o terror de seus familiares) que costumava acordar às cinco da manhã para preparar um gostoso café. Ela, uma verdadeira CSI nível cinco, descobriu uma goiabada e levantou o padrão de mordida do perpetrador do crime: faltavam três dentes na frente!
Alguém já disse: “Droga! Deveria ser a minha epifania!”
Ronaldo é um cara legal que trabalha como empreiteiro numa pequena, porém honesta firma de construção. Nas horas vagas Ronaldo também é mestre de capoeira, não aquela capoeira de balé em que os dançarinos pulam parecendo garças e que com piruetas encantam os turistas; ele é mestre na capoeira 'regional', a verdadeira arte marcial brasileira. Afilhado do mestre Sena e discípulo do legendário mestre Bimba, ele chegou a ser bicampeão brasileiro nos tempos áureos onde até estrangeiros participavam. Sua fama custou-lhe os incisivos centrais superiores e o incisivo lateral – os dentes da frente – fruto de uma 'meia lua de compasso' do seu arquiinimigo, o mestre Deusdete.
Arquiinimigo uma conversa. Quando não estão competindo, os dois vivem aprontando.
Durante uma noite depois que todos foram dormir Ronaldo e Deusdete cansados do futebol que os fez perder o horário da janta, atacaram a dispensa improvisada do camping, onde estavam estocados os alimentos. Eles bagunçaram tudo de maneira entrópica e antes de sair, Ronaldo abriu uma goiabada e sapecou uma dentada daquelas que encheu a cavidade bucal como se fosse sua última refeição de toda semana.
Teria sido tudo perfeito, se Ronaldo não tivesse decidido adiar após o acampamento a confecção de sua ponte fixa.

18 de fev. de 2011

Jocilene


Jocilene* tem apenas dezenove anos, é mãe de dois filhos e uma pessoa muito fechada. Sei que as pessoas que moram nas regiões rurais são um pouco desconfiadas, mas ela eleva isso ao cubo. Não que seja mal-educada, mas sua sisudez impressiona.
Seu filho caçula tem dois anos de idade e lembro bem a ocasião do seu nascimento: A equipe estava terminando os atendimentos da tarde, quando recebemos o ‘recado’ de que ela estava em trabalho de parto desde manhã. Cruzou as pernas e suportou as dores sem dar um grito, por todos os tortuosos vinte quilômetros de estrada de chão, que separam a comunidade do Riacho, da maternidade na sede da cidade. O menino nasceu enquanto preenchíamos os dados de sua mãe na recepção. Como disseram por lá: ‘escorregando como um quiabo’. Ficamos surpresos com a fibra e a coragem desta menina que, na época, tinha apenas dezessete anos.
Dizem que ela nunca chora, nem sente dor. Desde nova, tem uma vida difícil, aprendendo como é dura a luta de quem mora com uma família numerosa e que subsiste do que a terra dá. Casou-se também cedo com um homem bem mais velho e seu primeiro filho, ela teve com dezesseis anos.  Eu quero pensar que seja para tentar se livrar daquela rigorosa realidade e para dar um alívio à sua mãe, na pressão de alimentar tantas bocas.
Sempre que eu via Jocilene,  estava agendada para a enfermeira ou o médico, em suas consultas de puericultura, rotineiras no primeiro ano de vida de seu filho. Eu acenava à distância e procurava fazer um lembrete mental de cobrar sua visita. Mas hoje Jocilene, afinal, teve que ir ao dentista.
O seu problema dentário foi adiado até findar seu estoque de desculpas e quando ela foi a mim, descobriu infelizmente que seu molar estava irremediavelmente estragado. A saída seria removê-lo. Enfim, como acontece com muitos dos pacientes daquela comunidade e já esperando por isso, assentiu.
Aconteceu que antes de qualquer coisa, Jocilene cansou-se daquela imagem da corajosa menina-mulher de fibra e decidiu ser quem ela é realmente. Na minha cadeira ela chorou, soluçou, ficou com medo e contristou-se envergonhada. Dizia que não sabia o porquê daquilo acontecer (queria fazer-se acreditar que não tinha medo), enquanto desciam-lhe as lágrimas sem nada ter-se iniciado ainda.
Mas quer saber? Eu gostei.
Gostei de ver sua couraça junguiana de tanque de guerra, que foi elaborada anos a fio em busca de sua adaptação social, ceder lugar a aquela criança frágil (sua persona sem máscaras) que estava com medo do desconhecido. Não estou dizendo que gostei de vê-la sofrendo, de jeito algum! Mas naquele momento, estava acontecendo algo novo onde nem ela sabia direito e representa uma mudança muito positiva em sua vida, eu não poderia deixar de ser impactado.
Jocilene vai aos poucos procurando sua homeostase psicológica, compensando as etapas atropeladas de sua vida na medida em que suas emoções e seus anseios vencem suas barreiras auto-infligidas. Possivelmente isso ocorrerá aos trancos e barrancos, e o que eu vi pode ser mais que apenas reflexo de uma passageira fragilidade emocional. Uma vida inteira de amostras grátis emocionais está reservada para essa menina daqui pra frente.
Depois que ela se acalmou, o processo clínico transcorreu tranquilamente e não durou mais que quinze minutos. Quem sabe sua maneira de ver o mundo comece a ser abalada por uma simples visita ao dentista?

______________
*Não é seu nome real, OK?

Meme Motivacional

15 de fev. de 2011

Dra Fran Ectomia - Radiografando

Esta é uma verdadeira 'lenda urbana' no nosso meio; não resistir em colocar Fran neste apuro:

12 de fev. de 2011

Dra Fran Ectomia

Eu sei! Idéia copiada descaradamente do nosso querido Dr. A. Zedo do Dicas Odonto: http://www.dicasodonto.com.br/ Mas achei tão interessante que o Dr A. Zedo agora ganhou uma 'corega', a dra Fran Ectomia.

11 de fev. de 2011

Medo do colega

Sérgio acordou bem disposto nesse dia, mas na hora do seu café da manhã, aquela torrada com goiabada reservou para ele uma pontada no dente. De repente viu que não poderia procrastinar mais o que há tempos evitara com tanto ardor: Sua ida ao dentista.
Bom... É normal ter medo. Aqueles aparelhos, aquele motorzinho, os alicates, a agulha... Mas uma coisa o tornava diferente das demais pessoas com medo: Sérgio é dentista. 
Quando chegou a seu consultório, pegou a lista de telefones de todos os seus colegas de faculdade e começou a ponderar qual a colega mais magrinha teria a mão mais leve e preço mais em conta. Lembrou que em algumas aulas práticas quando tinha que fazer dobras de fios ortodônticos, tinha uma garota que reclamava de ter seus dedos feridos com as pontas dos fios. Ela odiava ter que machucar suas mãos delicadas... – É essa! Como se chamava mesmo? Fúvia? Núbia? Isso! Núbia! – Ele nem precisava procurar na agenda, sabia que ela trabalhava naquele prédio chique que construíram a toque de caixa no elegante bairro do Itaigara:
– Rose? Desmarque aquela senhora das onze e meia, que eu preciso ir... Hã... No mercado.
Dra Rúbia Francielly é uma dentista muito bonita e extremamente metódica. Baixinha, magrinha, de cabelos negros e olhos altivos, sua organização beira à compulsão. Se uma linha bem tênue entre a normalidade e o que é patológico existisse, digamos que ela soube muito bem tirar proveito.
Estava no seu oitavo e último atendimento, faminta por causa de seu café da manhã: uma fatia de pão integral com margarina diet, um suquinho de lima com adoçante e o caderno policial do jornal A Tarde. Começava a sentir uma pressão em sua espinha e parecia que era o seu estômago.
E também já tinha dado uns três gritos no menino Luquinhas – seu paciente de oito anos que parecia ter uma opinião própria de como deveria seguir o tratamento; outros quatro em sua mãe a espanhola dona Lila, que assistia toda confusão em estado lisérgico. A resina do Luquinhas estava quase acabando, quando sua atendente deslizou de modo muito peculiar e tristemente familiar: alguém chegou.
– Oi Lamento, mas estamos encerrando pela manhã – Resmungou a atendente, dona Roquinha, com um olhar de poucos amigos.
– Olá tudo bem? Este é o consultório de Núbia, não? Eu sou amigo dela e preciso muito falar. Vai ser rápido – Ao longo dos anos, Sérgio desenvolveu uma habilidosa técnica de lidar de maneira teflônica com gente mal-humorada.
– Agora é o horário de almoço e dra RÚbia não vai mais atender – Suave como mocotó de boi, Roquinha já estava dando meia volta em direção a sala.
– Ah! Não se preocupe, eu quero apenas conversar com ela. Olha, sou dentista também.
Vencida não por uma argumentação lógica, mas pela possibilidade de transferir para a sua chefa a responsabilidade de lhe dar um fora, Roquinha grunhiu uma afirmativa.
Rúbia conversava com dona Lila, mas estava com o canto do olho na porta entreaberta da recepção. Queria pegar um lance da situação que acontecia, mas embaralhava tudo com as recomendações para o Luquinhas.
– Diz que é dentista e que é seu amigo.
Roquinha consegue vocalizar sem mexer os lábios e Rúbia pensa em confeccionar uma placa miorrelaxante mais grossa para esse bruxismo. Ao remarcar Luquinhas, ela olhou e viu o Sérgio, tentando puxar da memória onde conhecia aquele rapaz. Talvez não se lembrasse de suas aulas de dobrar fios porque suas mãos pesadas sempre a faziam se cortar nas pontas afiadas.
– Olá colega, como vai? – Diz Rúbia;
– Olha Rúbia, se estou atrapalhando, volto outra hora... – Diz Sérgio usando o truque mais velho de psicologia do paradoxo que existe.
– Deixe disso, vamos... Diga como posso ajudá-lo?  – Começou a preencher a ficha enquanto Roquinha cuidava de limpar o consultório.
– Ah! Bem, eu... – Sérgio começou com o seu nascimento. Ressaltou como foi lindo o seu enxoval, contrastando com as complicações do seu parto. Passou pelas experiências peculiares de sua infância, relacionando-as com as cronologias eruptivas de seus dentes de leite. Citou toda a sua aprendizagem de ensino fundamental até a conclusão da faculdade, pontuando também todas as patologias que teve neste período: do resfriado à apendicectomia, nada escapou ao seu relatório. Rúbia tinha todo o histórico clinico do cirurgião-dentista, menos a sua queixa principal...
– Qual dente dói?
Anssa anquee óó... – como um contorcionista do cirque du soleil, Sérgio aponta pro dente errado.
– hum! Parece que a obturação infiltrou...
Rúbia olha para Roquinha. O nível de entendimento entre as duas era tal que ela poderia passar um texto inteiro sem dizer uma palavra. Aquele olhar dizia “Roquinha pegue a seringa de anestésico, dois tubetes, a cureta duflex comprada no mês passado; a espátula de titânio para o serviço ficar mais caro, o adesivo autocondicionante italiano de quinta geração; a resina nano-híbrida; o porta-matriz a cunha de madeira e faça rápido que estou faminta”. Menos de um minuto estava tudo ao seu alcance.
– Muito bem! Por favor, Sérgio, abra bem a boca.
– Calma colega eu estou com medo... Espere um pouco... Tem pomadinha não?
– Você também é dentista, sabe de tudo que vai acontecer... Não precisa ter medo. Rúbia esguicha pro alto um pouco de solução anestésica pela seringa carpule, que congela a espinha de Sérgio até o fundo dos olhos
– Mas eu tenho, a agora estou em pânico!
Num movimento de pura habilidade, Sérgio puxa a seringa de lançar água do equipamento de Rúbia, ameaçando-a com um mortífero spray de água.
– O que você está fazendo? – Pergunta Rúbia sem ação, porque deve ser supernormal um paciente ameaçar o dentista com uma seringa de água.
– Ele vai te molhar – Range Roquinha, pensando em algo abominável para acabar com aquela situação;
– E-eu apenas quero uma pomadinha!
– Me dá isso aqui – Rúbia puxa a seringa de água com a mão de Sérgio ainda por baixo, no mesmo momento que ele por reflexo aperta todos os botões que pode: um esguicho fatal de água mineral direto no rosto de Roquinha.
– Ah seu filho da...
– Solta isso! – Rúbia grita pela oitava vez nesta manhã.
– Solta isso! – Grita pela primeira vez Roquinha, que sem enxergar direito, segura por cima da mão de Rúbia; que segura por cima da mão de Sérgio; que continua a apertar os botões: O esguicho agora foi nos óculos de Rúbia...
– Ah, seu filho da...
Roquinha, recuperada da momentânea perda da visão por motivos hídricos, põe em pratica o que desejava fazer desde que o viu entrar na recepção e aplica um jab de esquerda (com uma limpa visão direta) no queixo do Sérgio. Knockdown muito melhor que a sedação por óxido nitroso.
– Porra! – Após praguejar Rúbia aplica sua anestesia com toda técnica anestésica de bloquear quadrúpedes.
Sergio ao sentir a ardência (porque o murro ele não sentiu, Roquinha bateu legal) percebe que o lado que está anestesiado não coincide com o lado da pontada matutina.
– Anssê ráamplirano nurulugar anrrado!
– Cala a boca! – Rúbia procura pelo fórceps na bandeja quando se dá conta que é só uma obturação;
– Anssê ráamplirano nurulugar anrrado! – repete Sérgio com a boca cheia de rolinhos de algodão estratégicamente posicionados para não se ouvir mais a sua voz.
Rúbia provavelmente não iria obturar o dente errado, mesmo anestesiando o lado contrário, tonta por causa de seu novo paciente. Mas o Sérgio não tinha disposição de esperar, nem de furar dente algum; e estando muito bem seguro pela Roquinha, tinha que agir rapidamente.
Pulou da cadeira, derrubou a bandeja, esgarçou o sugador; espetou a anestesia na perna, derrubou Roquinha e arrastou Rúbia. Entrou no sanitário por engano, saiu levando o rolo de papel higiênico grudado no sapato; esbarrou no batente da porta resvalou pro lado e finalmente escapou fedendo do consultório.
Rúbia olha mais uma vez para Roquinha:
– Vamos numa pizza? Eu pago!

4 de fev. de 2011

Manual de Manipulação da Verdade

A verdade é absoluta, certo? Depende... Há controvérsias. A verdade está sujeita a uma interpretação pelos sentidos daquilo que é a realidade. Em virtude disso, se em essência ela não pode mudar, você manipular a forma com que ela é percebida. A verdade sempre esteve do lado do mais forte ou do mais esperto, portanto, você pode se "instrumentalizar" de modo a se tornar um "operador" da verdade.
Depois de sofrer com a malícia e maldade de alguns que sem constrangimento usam da boa fé de outrem para construir alicerces prósperos, resolvi elaborar um pequeno e resumido manual do uso não muito ético da verdade, afinal quem não ilude não sabe quando está sendo iludido.
Observe alguns exemplos práticos de como alguns usam da verdade:
1. Use e abuse de Falácias.
Falácias são argumentos sem sustentação lógica aparente, tendo apenas validade emocional. A falácia apela ao populismo, à força, a exaustão, dentre outras coisas. A falácia é um instrumento poderoso para usar com pessoas de pouco estudo ou que estejam sob algum tipo de pressão psicológica que abale sua cognição. Atenção: A falácia é facilmente derrubada pela sua própria argumentação, o ideal é vir em linhas gerais, tipo ‘abordagem de horóscopo’;
2. Discuta sobre a credibilidade do transmissor da mensagem.
Lembre-se que todo ser humano tem falhas, e possivelmente desconfia se outras pessoas sabem ou não delas. Se a mensagem for positiva pra você, não se importe, pois dela se trará mais benefícios. Mas se for negativa, sem problemas! Questione a integridade daquele que trouxe e assim atrairá mais atenção por sobre este do que o próprio conteúdo relevante da mensagem;
3. Manipule os fatos.
O fato em si não muda, mas sua prova pode sofrer diferentes tipos de interpretações, principalmente se for através de documentos e notas fiscais frias. Mostre alguma referência que nunca ou dificilmente será checada. O tempo perdido em se procurar o fundamento pode desestimular
4. Mantenha uma postura sínica.
Seja descarado se por ventura sua argumentação se esvair. Faça cara de blasé e diga que está vendo o que ninguém mais vê, apele ao sobrenatural. Não se importe com o sofrimento alheio, a verdade nunca leva um esperto ao sucesso.
5. Por fim, minta.
Mas o faça de maneira teatral, com embasamento emotivo e psicológico (porque o real não existe mesmo). Se tudo falhar e aparecer à verdade, procure em alguém o opróbrio expiativo.
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