Sérgio acordou bem disposto nesse dia, mas na hora do seu café da manhã, aquela torrada com goiabada reservou para ele uma pontada no dente. De repente viu que não poderia procrastinar mais o que há tempos evitara com tanto ardor: Sua ida ao dentista.
Bom... É normal ter medo. Aqueles aparelhos, aquele motorzinho, os alicates, a agulha... Mas uma coisa o tornava diferente das demais pessoas com medo: Sérgio é dentista.
Quando chegou a seu consultório, pegou a lista de telefones de todos os seus colegas de faculdade e começou a ponderar qual a colega mais magrinha teria a mão mais leve e preço mais em conta. Lembrou que em algumas aulas práticas quando tinha que fazer dobras de fios ortodônticos, tinha uma garota que reclamava de ter seus dedos feridos com as pontas dos fios. Ela odiava ter que machucar suas mãos delicadas... – É essa! Como se chamava mesmo? Fúvia? Núbia? Isso! Núbia! – Ele nem precisava procurar na agenda, sabia que ela trabalhava naquele prédio chique que construíram a toque de caixa no elegante bairro do Itaigara:
– Rose? Desmarque aquela senhora das onze e meia, que eu preciso ir... Hã... No mercado.
Dra Rúbia Francielly é uma dentista muito bonita e extremamente metódica. Baixinha, magrinha, de cabelos negros e olhos altivos, sua organização beira à compulsão. Se uma linha bem tênue entre a normalidade e o que é patológico existisse, digamos que ela soube muito bem tirar proveito.
Estava no seu oitavo e último atendimento, faminta por causa de seu café da manhã: uma fatia de pão integral com margarina diet, um suquinho de lima com adoçante e o caderno policial do jornal A Tarde. Começava a sentir uma pressão em sua espinha e parecia que era o seu estômago.
E também já tinha dado uns três gritos no menino Luquinhas – seu paciente de oito anos que parecia ter uma opinião própria de como deveria seguir o tratamento; outros quatro em sua mãe a espanhola dona Lila, que assistia toda confusão em estado lisérgico. A resina do Luquinhas estava quase acabando, quando sua atendente deslizou de modo muito peculiar e tristemente familiar: alguém chegou.
– Oi Lamento, mas estamos encerrando pela manhã – Resmungou a atendente, dona Roquinha, com um olhar de poucos amigos.
– Olá tudo bem? Este é o consultório de Núbia, não? Eu sou amigo dela e preciso muito falar. Vai ser rápido – Ao longo dos anos, Sérgio desenvolveu uma habilidosa técnica de lidar de maneira teflônica com gente mal-humorada.
– Agora é o horário de almoço e dra RÚbia não vai mais atender – Suave como mocotó de boi, Roquinha já estava dando meia volta em direção a sala.
– Ah! Não se preocupe, eu quero apenas conversar com ela. Olha, sou dentista também.
Vencida não por uma argumentação lógica, mas pela possibilidade de transferir para a sua chefa a responsabilidade de lhe dar um fora, Roquinha grunhiu uma afirmativa.
Rúbia conversava com dona Lila, mas estava com o canto do olho na porta entreaberta da recepção. Queria pegar um lance da situação que acontecia, mas embaralhava tudo com as recomendações para o Luquinhas.
– Diz que é dentista e que é seu amigo.
Roquinha consegue vocalizar sem mexer os lábios e Rúbia pensa em confeccionar uma placa miorrelaxante mais grossa para esse bruxismo. Ao remarcar Luquinhas, ela olhou e viu o Sérgio, tentando puxar da memória onde conhecia aquele rapaz. Talvez não se lembrasse de suas aulas de dobrar fios porque suas mãos pesadas sempre a faziam se cortar nas pontas afiadas.
– Olá colega, como vai? – Diz Rúbia;
– Olha Rúbia, se estou atrapalhando, volto outra hora... – Diz Sérgio usando o truque mais velho de psicologia do paradoxo que existe.
– Deixe disso, vamos... Diga como posso ajudá-lo? – Começou a preencher a ficha enquanto Roquinha cuidava de limpar o consultório.
– Ah! Bem, eu... – Sérgio começou com o seu nascimento. Ressaltou como foi lindo o seu enxoval, contrastando com as complicações do seu parto. Passou pelas experiências peculiares de sua infância, relacionando-as com as cronologias eruptivas de seus dentes de leite. Citou toda a sua aprendizagem de ensino fundamental até a conclusão da faculdade, pontuando também todas as patologias que teve neste período: do resfriado à apendicectomia, nada escapou ao seu relatório. Rúbia tinha todo o histórico clinico do cirurgião-dentista, menos a sua queixa principal...
– Qual dente dói?
– Anssa anquee óó... – como um contorcionista do cirque du soleil, Sérgio aponta pro dente errado.
– hum! Parece que a obturação infiltrou...
Rúbia olha para Roquinha. O nível de entendimento entre as duas era tal que ela poderia passar um texto inteiro sem dizer uma palavra. Aquele olhar dizia “Roquinha pegue a seringa de anestésico, dois tubetes, a cureta duflex comprada no mês passado; a espátula de titânio para o serviço ficar mais caro, o adesivo autocondicionante italiano de quinta geração; a resina nano-híbrida; o porta-matriz a cunha de madeira e faça rápido que estou faminta”. Menos de um minuto estava tudo ao seu alcance.
– Muito bem! Por favor, Sérgio, abra bem a boca.
– Calma colega eu estou com medo... Espere um pouco... Tem pomadinha não?
– Você também é dentista, sabe de tudo que vai acontecer... Não precisa ter medo. Rúbia esguicha pro alto um pouco de solução anestésica pela seringa carpule, que congela a espinha de Sérgio até o fundo dos olhos
– Mas eu tenho, a agora estou em pânico!
Num movimento de pura habilidade, Sérgio puxa a seringa de lançar água do equipamento de Rúbia, ameaçando-a com um mortífero spray de água.
– O que você está fazendo? – Pergunta Rúbia sem ação, porque deve ser supernormal um paciente ameaçar o dentista com uma seringa de água.
– Ele vai te molhar – Range Roquinha, pensando em algo abominável para acabar com aquela situação;
– E-eu apenas quero uma pomadinha!
– Me dá isso aqui – Rúbia puxa a seringa de água com a mão de Sérgio ainda por baixo, no mesmo momento que ele por reflexo aperta todos os botões que pode: um esguicho fatal de água mineral direto no rosto de Roquinha.
– Ah seu filho da...
– Solta isso! – Rúbia grita pela oitava vez nesta manhã.
– Solta isso! – Grita pela primeira vez Roquinha, que sem enxergar direito, segura por cima da mão de Rúbia; que segura por cima da mão de Sérgio; que continua a apertar os botões: O esguicho agora foi nos óculos de Rúbia...
– Ah, seu filho da...
Roquinha, recuperada da momentânea perda da visão por motivos hídricos, põe em pratica o que desejava fazer desde que o viu entrar na recepção e aplica um jab de esquerda (com uma limpa visão direta) no queixo do Sérgio. Knockdown muito melhor que a sedação por óxido nitroso.
– Porra! – Após praguejar Rúbia aplica sua anestesia com toda técnica anestésica de bloquear quadrúpedes.
Sergio ao sentir a ardência (porque o murro ele não sentiu, Roquinha bateu legal) percebe que o lado que está anestesiado não coincide com o lado da pontada matutina.
– Anssê ráamplirano nurulugar anrrado!
– Cala a boca! – Rúbia procura pelo fórceps na bandeja quando se dá conta que é só uma obturação;
– Anssê ráamplirano nurulugar anrrado! – repete Sérgio com a boca cheia de rolinhos de algodão estratégicamente posicionados para não se ouvir mais a sua voz.
Rúbia provavelmente não iria obturar o dente errado, mesmo anestesiando o lado contrário, tonta por causa de seu novo paciente. Mas o Sérgio não tinha disposição de esperar, nem de furar dente algum; e estando muito bem seguro pela Roquinha, tinha que agir rapidamente.
Pulou da cadeira, derrubou a bandeja, esgarçou o sugador; espetou a anestesia na perna, derrubou Roquinha e arrastou Rúbia. Entrou no sanitário por engano, saiu levando o rolo de papel higiênico grudado no sapato; esbarrou no batente da porta resvalou pro lado e finalmente escapou fedendo do consultório.
Rúbia olha mais uma vez para Roquinha: – Vamos numa pizza? Eu pago!